Artigos e Opiniões







18 de maio de 2010 

Mulher e HIV/aids: desafios contra a violência
Tatyane Guimarães Oliveira

A cultura vigente de avaliar o ser humano de acordo com suas práticas sexuais ou qualquer comportamento que não se enquadre no que se definiu como “moral” acarretou e ainda acarreta sérias conseqüências para a epidemia da aids.
            E nesse sentido a violência contra a mulher, seja simbólica, física, moral, sexual ou institucional, tem enfaticamente contribuído para a sua vulnerabilidade à doença. Nos caminhos tortuosos percorridos pelas mulheres no decorrer da história, nos deparamos com o mais novo desafio: enfrentar a AIDS.
            Para o enfrentamento da AIDS, é preciso falar em enfrentamento à violência contra a mulher e à promoção de sua dignidade e consideração como sujeito ativo e determinante de seu próprio caminho. As mais variadas formas de violência contra a mulher reforçam sua exclusão e a dominação de seu corpo e de sua liberdade.
            Não queremos nos limitar a falar apenas da violência física e sexual como uma causa concreta e direta para a vulnerabilidade da mulher ao vírus. Sem prejuízo desta violência, que, em face de diversos fatores simbólicos ainda persiste em nossa sociedade a números alarmantes, é necessário enfatizar também a relação direta entre o controle da sexualidade e do corpo feminino e a AIDS, e consequentemente a urgência do empoderamento e da capacitação política das mulheres.
Variados militantes e estudiosos, como Richard Parker e Hebert Daniel, alertam para a necessidade de se entender as formas pelas se dão a interação entre a exclusão social e a aids como parte de uma mais ampla configuração social e cultural, na qual imagens distorcidas, tanto da doença quanto das pessoas que vivem com a doença ligaram-se a preconceitos pré-existentes de maneira que ao final reproduzem e reinventam esses preconceitos como a única resposta possível para a epidemia.
Os diferentes contextos traduzem diferentes situações e a realidade feminina não foge a essa questão, nesse sentido Ana Paulo Portella ressalta:
“Deve-se dizer, porem, que afirmar que todas as mulheres estão expostas à violência não é o mesmo que dizer que todas as mulheres estão expostas à mesma violência ou à mesma intensidade e severidade das agressões. (...) as relações de gênero que fundam a violência não existe no vazio, mas, sim, em contextos históricos e sócio-culturais, específicos que conferem características diferenciadas à violência.”

Dentro de um contexto de controle histórico da sexualidade feminina e de opressão ao uso independente de seu corpo, a AIDS veio atingir de forma persistente a vida de mulheres em face dessa violência.
Uma das noções que diretamente se relacionam com sua vulnerabilidade ao vírus é a noção de grupos de risco. Apesar do esforço para desconstruir essa concepção errônea sobre a AIDS, a cultura machista e sexista atual reforçam a sua incidência.
O perigo da teoria de “grupos de risco” e “comportamento de risco” pode ser vislumbrado quando relacionados ao aumento da incidência da doença em mulheres com parceiros fixos. Segundo pesquisa realizada por Soares (2003. p. 124):
“É importante destacar que a crença de que possuir um único parceiro sexual evita-se contrair o HIV, constitui um elemento que expõe, possivelmente, as mulheres ao risco de contraírem o HIV. Vale salientar que a maioria das mulheres do estudo foi contaminada pelo companheiro/esposo, possivelmente pelo fato de acreditar que a mulher que possui um único parceiro, numa relação afetiva, de confiança, contribuiu para que elas descartassem, por completo, a possibilidade de contrair o HIV. (...) 62,3% dessas mulheres referiram ter certeza de que não pegariam aids em suas relações.”

                A própria negociação do uso da camisinha nas relações sexuais com parceiros fixos é atingida por essa concepção. Pedir para o companheiro usar camisinha no âmbito de uma relação estável, para a mulher, torna-se sinônimo de traição e promiscuidade, o que dificulta a prevenção do HIV/AIDS em mulheres com parceiros fixos e aumenta sua vulnerabilidade.
O controle da sexualidade feminina e a demonização de uma vida sexual fora de um relacionamento fixo, torna a mulher vulnerável ao vírus. É a violência simbólica difundida contra a mulher, que numa convergência de forças estimula a violência física e sexual (coisificação da mulher) e a violência moral relacionadas ao corpo.
Pessoas que contraíram o vírus ficam com medo de serem incluídas nestes grupos e de sofrer uma dupla estigmatização: ter uma doença “contagiosa, incurável e mortal” e ser inserida nos “grupos de risco” (profissionais do sexo, mulheres promiscuas, usuário de drogas, homossexuais).
O que se verifica é que essas imagens distorcidas em relação à AIDS e à mulher provocaram violações de direitos humanos em quase todas as suas formas: saúde, trabalho, liberdade, dignidade, igualdade, entre outros.
A violência simbólica com a perpetuação da imagem feminina como coisa, a violência moral relacionada à falta de negociação do uso da camisinha, os estupros, as agressões físicas e sua conseqüente submissão por medo, todas reforçadas pela violência institucional, são as características da pandemia da violência contra as mulheres.
            Existem contextos que são favoráveis a violência contra a mulher e que precisam de “legitimidade para ser exercida, sendo esta que determinará o maior ou o menor grau de permissividade ou licença social para a violência” (Portella, 2005). É nesse sentido que se encontra a importância do empoderamento feminino e de sua capacitação política para que possa deslegitimar a violência de gênero nos espaços que ocupam e que devem ocupar.

REFERENCIAS

DANIEL, Herbert; PARKER, Richard. AIDS, a terceira epidemia: ensaios e tentativas. São Paulo: Iglu, 1991.
PORTELLA, Ana Paula. Novas faces da violência contra as mulheres. In: BRASIL. Presidência da Republica. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Marcadas à Ferro. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2005.
SOARES, Maria Julia Guimarães Oliveira. Mulheres e HIV/AIDS: análise de comportamento preventivo à luz do Modelo de Crenças em Saúde. 2003. Tese (doutorado). Universidade Federal do Ceara. Fortaleza.

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Uma sentença, vários caminhos: uma análise sobre a Turma Especial de Direito de Goiás

              Ao analisar a sentença proferida pela Justiça Federal do Estado de Goiás que decidiu, em primeira instância, extinguir a Turma Especial de Direito para Beneficiários da Reforma Agrária e Agricultura Familiar na Universidade Federal de Goiás (UFG), percebemos vários elementos das nossas limitações institucionais, tanto do Judiciário quanto da Educação Jurídica. Que fazer?
Por Hugo Belarmino[1]


              Aceitando os argumentos do Ministério Público Federal de Goiás na propositura da Ação Civil Pública n° 2008.35.00.013973-0, a Justiça Federal, em primeira instância, determinou a extinção da Turma Especial de Direito de Goiás, que utiliza verbas do Programa Nacional de Educação para Reforma Agrária (PRONERA). Os dois principais argumentos utilizados pelo MPF-GO nesta Ação relacionam-se com uma compreensão extremamente reduzida sobre o Programa, com conseqüências para o entendimento do Direito e da Educação Jurídica.
              Na sentença, conclui-se que um Curso de Direito não poderia utilizar verbas do PRONERA como fonte de recursos, haja vista a inadequação da “atividade técnico-jurídica” com a “manutenção do homem no campo” ou com o “desenvolvimento sustentável”. Alega-se, portanto, ilegalidade por “desvio de finalidade” no conjunto dos atos administrativos para celebração do convênio entre INCRA e UFG. Há aí, nitidamente, uma confusão entre Educação do Campo e Educação Rural: a primeira é uma conquista dos Movimentos Sociais do Campo e demanda ações educativas “em todos os níveis nas áreas de Reforma Agrária”, segundo o Manual de Operações do próprio Programa. Desta luta os movimentos sociais demonstraram a necessidade de repensar a Educação a partir de um molde diferenciado, adequado ao público-alvo e referenciado na consolidação da Reforma Agrária.
             Tanto na petição do Promotor quanto na sentença, essas discussões não são incluídas adequadamente, vinculando o objetivo do PRONERA a uma dimensão “geográfica” do curso de Direito: “O habitat do profissional do Direito”, diz o Promotor, “é o meio urbano, pois é nesta localidade em que se encontram os demais operadores da ciência jurídica”. E o Juiz, “o mister do bacharel em Direito não é desenvolvido no campo e não tem qualquer relação com a atividade ali desenvolvida, senão reflexamente, como qualquer outro labor profissional...”
              Para aqueles que lidam com as questões fundiárias no país, parece óbvio que um curso de Direito – além de útil – é necessário para instrumentalizar os trabalhadores e trabalhadoras do campo para as questões jurídicas – tão freqüentes não só por conta dos conflitos possessórios mas também na assessoria técnica-popular aos projetos produtivos (associativismo e cooperativismo), questões de políticas públicas e direitos sociais, educação em direitos humanos, etc. Afirmar que só há uma relação “reflexa”, não direta, entre a atuação destes futuros juristas agrários e os objetivos do Programa parece ser uma compreensão infundada do próprio Direito Positivo Constitucional que serve de base para a iniciativa.
             O outro argumento, esse mais conhecido e debatido, é sobre a questão das políticas afirmativas. Na sentença, o Juiz determina que, mesmo não reconhecida a ilegalidade do ponto anterior, a Turma Especial não poderia ser caracterizada como ação afirmativa, por afronta ao princípio da isonomia: “a escolha arbitrária dos destinatários das referidas vagas exclui expressamente a possibilidade de acesso a todos os demais trabalhadores rurais não assentados ou aqueles que laboram como empregados rurais ou ainda os que estão em profunda inferioridade em relação aos eleitos pela portaria que são os diaristas rurais (bóias-frias)”. Aqui a questão se inverte. De fato, o processo de exclusão social no campo é muito maior e atinge vários atores sociais, o que não deslegitima, antes reforça, a necessidade da Turma. Não se trata de uma “escolha arbitrária”, mas sim “vinculada” (no sentido administrativo) aos propósitos do Programa, o que não resolve todos os problemas do campo (até porque o Direito, como se sabe, não tem “autonomia” para resolver todos conflitos sozinho) mas aponta uma ação tática nesse sentido, pioneira quando se trata de um Curso Jurídico, tradicionalmente restrito e conservador.
             De um lado, a atuação do Direito (com letra maiúscula) para exercer seu papel de controle social: deve-se impedir o “desvio” que representa uma Turma de Direito em moldes diferenciados, com um público “estranho” à normalidade da Ciência Jurídica e com objetivos contra-hegemônicos bem definidos. O modelo central de Educação Jurídica (descontextualizado, dogmático, unidisciplinar e elitizado) não pode conviver com uma iniciativa como esta, afinal, para os mais de 1.100 cursos jurídicos no país (com mais de 200.000 vagas, segundo dados do INEP), estes 60 trabalhadores e trabalhadoras de uma  única Turma incomodam, e muito.
              De outro, uma necessidade: conjugar forças para apoiar (política e juridicamente) a iniciativa em desenvolvimento na UFG. Movimentos sociais, advogados e advogadas populares, entidades de defesa dos direitos humanos, estudantes de direito, enfim, aqueles e aquelas que, a duras penas, ainda enxergam no Direito um espaço importante de lutas, precisam compreender que esta sentença traz algo a mais. Ela aponta as limitações institucionais do Judiciário e da Educação Jurídica em reconhecer as contradições e as desigualdades sociais próprias do nosso tempo. De vários caminhos possíveis, resta-nos aquele que denuncia estas contradições e utiliza delas para a transformação social.


[1] Mestrando em Ciências Jurídicas (área de concentração em Direitos Humanos) pela Universidade Federal da Paraíba. Membro da Dignitatis – Assessoria Técnica Popular.

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