Ao analisar a sentença proferida pela Justiça Federal do Estado de Goiás que decidiu, em primeira instância, extinguir a Turma Especial de Direito para Beneficiários da Reforma Agrária e Agricultura Familiar na Universidade Federal de Goiás (UFG), percebemos vários elementos das nossas limitações institucionais, tanto do Judiciário quanto da Educação Jurídica. Que fazer?Por Hugo Belarmino[1]
Aceitando os argumentos do Ministério Público Federal de Goiás na propositura da Ação Civil Pública n° 2008.35.00.013973-0, a Justiça Federal, em primeira instância, determinou a extinção da Turma Especial de Direito de Goiás, que utiliza verbas do Programa Nacional de Educação para Reforma Agrária (PRONERA). Os dois principais argumentos utilizados pelo MPF-GO nesta Ação relacionam-se com uma compreensão extremamente reduzida sobre o Programa, com conseqüências para o entendimento do Direito e da Educação Jurídica.Na sentença, conclui-se que um Curso de Direito não poderia utilizar verbas do PRONERA como fonte de recursos, haja vista a inadequação da “atividade técnico-jurídica” com a “manutenção do homem no campo” ou com o “desenvolvimento sustentável”. Alega-se, portanto, ilegalidade por “desvio de finalidade” no conjunto dos atos administrativos para celebração do convênio entre INCRA e UFG. Há aí, nitidamente, uma confusão entre Educação do Campo e Educação Rural: a primeira é uma conquista dos Movimentos Sociais do Campo e demanda ações educativas “em todos os níveis nas áreas de Reforma Agrária”, segundo o Manual de Operações do próprio Programa. Desta luta os movimentos sociais demonstraram a necessidade de repensar a Educação a partir de um molde diferenciado, adequado ao público-alvo e referenciado na consolidação da Reforma Agrária.Tanto na petição do Promotor quanto na sentença, essas discussões não são incluídas adequadamente, vinculando o objetivo do PRONERA a uma dimensão “geográfica” do curso de Direito: “O habitat do profissional do Direito”, diz o Promotor, “é o meio urbano, pois é nesta localidade em que se encontram os demais operadores da ciência jurídica”. E o Juiz, “o mister do bacharel em Direito não é desenvolvido no campo e não tem qualquer relação com a atividade ali desenvolvida, senão reflexamente, como qualquer outro labor profissional...”Para aqueles que lidam com as questões fundiárias no país, parece óbvio que um curso de Direito – além de útil – é necessário para instrumentalizar os trabalhadores e trabalhadoras do campo para as questões jurídicas – tão freqüentes não só por conta dos conflitos possessórios mas também na assessoria técnica-popular aos projetos produtivos (associativismo e cooperativismo), questões de políticas públicas e direitos sociais, educação em direitos humanos, etc. Afirmar que só há uma relação “reflexa”, não direta, entre a atuação destes futuros juristas agrários e os objetivos do Programa parece ser uma compreensão infundada do próprio Direito Positivo Constitucional que serve de base para a iniciativa.O outro argumento, esse mais conhecido e debatido, é sobre a questão das políticas afirmativas. Na sentença, o Juiz determina que, mesmo não reconhecida a ilegalidade do ponto anterior, a Turma Especial não poderia ser caracterizada como ação afirmativa, por afronta ao princípio da isonomia: “a escolha arbitrária dos destinatários das referidas vagas exclui expressamente a possibilidade de acesso a todos os demais trabalhadores rurais não assentados ou aqueles que laboram como empregados rurais ou ainda os que estão em profunda inferioridade em relação aos eleitos pela portaria que são os diaristas rurais (bóias-frias)”. Aqui a questão se inverte. De fato, o processo de exclusão social no campo é muito maior e atinge vários atores sociais, o que não deslegitima, antes reforça, a necessidade da Turma. Não se trata de uma “escolha arbitrária”, mas sim “vinculada” (no sentido administrativo) aos propósitos do Programa, o que não resolve todos os problemas do campo (até porque o Direito, como se sabe, não tem “autonomia” para resolver todos conflitos sozinho) mas aponta uma ação tática nesse sentido, pioneira quando se trata de um Curso Jurídico, tradicionalmente restrito e conservador.De um lado, a atuação do Direito (com letra maiúscula) para exercer seu papel de controle social: deve-se impedir o “desvio” que representa uma Turma de Direito em moldes diferenciados, com um público “estranho” à normalidade da Ciência Jurídica e com objetivos contra-hegemônicos bem definidos. O modelo central de Educação Jurídica (descontextualizado, dogmático, unidisciplinar e elitizado) não pode conviver com uma iniciativa como esta, afinal, para os mais de 1.100 cursos jurídicos no país (com mais de 200.000 vagas, segundo dados do INEP), estes 60 trabalhadores e trabalhadoras de uma única Turma incomodam, e muito.De outro, uma necessidade: conjugar forças para apoiar (política e juridicamente) a iniciativa em desenvolvimento na UFG. Movimentos sociais, advogados e advogadas populares, entidades de defesa dos direitos humanos, estudantes de direito, enfim, aqueles e aquelas que, a duras penas, ainda enxergam no Direito um espaço importante de lutas, precisam compreender que esta sentença traz algo a mais. Ela aponta as limitações institucionais do Judiciário e da Educação Jurídica em reconhecer as contradições e as desigualdades sociais próprias do nosso tempo. De vários caminhos possíveis, resta-nos aquele que denuncia estas contradições e utiliza delas para a transformação social.
[1] Mestrando em Ciências Jurídicas (área de concentração em Direitos Humanos) pela Universidade Federal da Paraíba. Membro da Dignitatis – Assessoria Técnica Popular.
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