6 de setembro de 2010

A Federalização do Caso Manoel Mattos - Revista Carta Capital por Ubiratan Cazetta


A federalização do caso Manoel Mattos

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Ubiratan Cazetta 6 de setembro de 2010 às 9:54h

Introduzido no fim de 2004 em nosso sistema, o IDC permite transferir da Justiça estadual para a Justiça federal a competência para cuidar de determinados casos. Por Ubiratan Cazetta

Como tantos outros, o discurso dos direitos humanos é um tema fácil, que aceita várias afirmações, discursos inflamados, mas que encontra uma dificuldade essencial para sua aplicação concreta, para sair do campo das intenções e ingressar nos gestos práticos. Dificuldade essa que, por muitas vezes, se esconde num pretenso discurso de respeito aos próprios direitos humanos, ao federalismo ou outra desculpa que, em verdade, se utiliza para fugir do enfrentamento direto de problemas da sociedade.

Um destes momentos cruciais da afirmação concreta dos direitos humanos será vivido na semana que marca os festejos da nossa independência, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidirá sobre o segundo Incidente de Deslocamento de Competência (IDC), nome formal daquilo que se costuma chamar de federalização dos crimes dos direitos humanos.

Introduzido no fim de 2004 em nosso sistema, o IDC permite transferir da Justiça estadual para a Justiça federal a competência para cuidar de determinados casos. Desde que eles configurem graves violações de direitos humanos e haja possibilidade de que a omissão do Estado brasileiro leve a uma condenação internacional pelo desrespeito aos diversos tratados e convenções internacionais que nos obrigamos a cumprir.

O primeiro pedido de deslocamento de competência envolveu a morte da missionária Dorothy Stang, no Pará, mas foi julgado improcedente. O STJ, àquela altura, considerou que as investigações tinham dado uma resposta eficiente ao dever de investigar. Mesmo que essa decisão tenha sido bastante modesta e conservadora, ela já demonstrou que o mecanismo poderia ser aplicado.

Agora, tem o STJ a chance de confirmar seu papel, transferindo para a esfera federal a obrigação de investigar com eficiência os fatos que envolvem grupos de extermínio em atuação na divisa entre Pernambuco e Paraíba e que acabaram redundando na morte do advogado Manoel Mattos. Juntamente com outros ativistas de direitos humanos, Mattos defendia há anos a necessidade de se colocar fim à inércia em combater os fatos que já contabilizavam mais de 200 mortes não apuradas. Mesmo com uma ordem de proteção expedida pela Organização dos Estados Americanos (OEA), que determinava a sua proteção pessoal, ele foi executado em janeiro de 2009.

Pensavam os autores do crime que essa morte seria a confirmação, mais uma vez, de que as conclusões da CPI que apurou a ação dos grupos de extermínio e que apontou a necessidade de investigação do envolvimento de policiais, juízes, promotores, parlamentares e prefeitos, seriam novamente desprezadas, esquecidas ou apenas formalmente investigadas.

Em resumo, os autores do crime apostam na impunidade, na certeza de que nada será feito para garantir o direito da sociedade de mudar este quadro e parte deste direito passa pela necessidade de a União assumir o papel de promoção dos direitos humanos e acabar com as desculpas na demora, na ineficiência, na falta de estrutura. Até porque a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e a Justiça Federal terão não apenas a competência para investigar a atuação do grupo de extermínio como um todo, como, também, o fato específico da morte de Mattos.

Tão importante quanto a vida do advogado são as diversas outras vidas que foram retiradas, das condenações que foram impostas por um grupo de pessoas, algumas pretensamente integrantes do aparelho estatal, encarregadas, ironicamente, de assegurar aos cidadãos o direito à vida, o acesso à Justiça e um sistema adequado de segurança pública.

O que se discute no STJ, menos do que um caso concreto que envolveu a morte de um defensor dos direitos humanos, é um projeto de sociedade em que mortes, violência e desrespeito sejam corretamente investigadas e punidas, seguindo os critérios de uma sociedade que se pretende plural, democrática e moderna.

*Procurador da República, mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará e autor do livro Federalismo e Direitos Humanos: O incidente de deslocamento de competência.

Ubiratan Cazetta

Ubiratan Cazetta é Procurador da República, mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará e autor do livro "Federalismo e Direitos Humanos: O incidente de deslocamento de competência".

 


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"A ordem universal frequentemente apresentada como irresistível é, todavia, defrontada e afrontada, na prática, por uma ordem local, que é sede de um sentimento e aponta um destino." M.S.

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